Em sequência a meus comentários anteriores sobre a Lei Complementar nº 182, de 1º de junho do corrente ano, o chamado Marco Legal das StartUps, direciono a análise sobre um aspecto relativo à contratação. O Art. 5º. da lei lança um elenco de instrumentos contratuais que poderão servir de instrumentos formais para materializar o aporte de capital de um Investidor-Anjo em algum projeto de inovação.
Da identificação dos instrumentos contratuais propriamente ditos, os quais não são, por ora, analisados em suas respectivas especificidades, é certo afirmar que a própria lei acaba definindo a relevância do contrato de participação na relação entre o Anjo e seu empreendedor, vejamos:
- o Investidor-Anjo, mesmo não sendo considerado sócio, não tendo direito à gerência, ou a voto na administração da empresa, ainda assim, poderá deter alguma deliberação de caráter consultivo, desde que previsto no contrato de participação;
- o Investidor-Anjo poderá ser remunerado pelo seu aporte de investimento, pelo prazo máximo de 7(sete) anos. O formato e a periodicidade serão ajustados livremente entre as partes, desde que não ultrapassado o prazo legal;
- o Investidor, ainda segundo disposição de seu contrato, poderá exigir apresentação de contas justificadas da administração da empresa, inventários, balanços patrimonial e de resultado econômico, assim como poderá examinar, a qualquer momento, os livros, os documentos e o estado do caixa e da carteira da sociedade, exceto se houver previsão contratual que determine época própria para isso.
São vários dispositivos da nova lei, portanto, que remetem a relação entre o Investidor-Anjo e o empreendedor à regulação através do contrato de participação, atendida a liberdade de contratação entre as partes e os limites mínimos e máximos da lei.
Mas até aí não haveria preocupação, posto que bastaria aos advogados e demais experts mais atentos construírem um bom contrato, indicando todas as hipóteses que visem, de maneira equilibrada, proteger o investidor e o empreendimento.
No entanto, dada à sua natureza, é imperioso que o contrato de investimento seja construído, não somente tendo em conta o seu caráter transacional tradicional, mas a essência de como as partes deverão se relacionar uma com a outra. Afinal, estamos falando de abrir os segredos de empresa, abrir as contas, abrir integralmente as portas para quem, mesmo não sendo sócio, estará inserido no negócio, potencializando a sua própria viabilidade. Ou seja, o empreendedor terá de compartilhar até mesmo parte da própria governança com quem nem sequer poderá vir a ser sócio.
Além disso, a relação entre o empreendedor e seu Anjo é de longo prazo, exige confiança, transparência, equilíbrio e boa-fé. E como contratar as condutas que expressem a confiança, a transparência, mantenham o equilíbrio e expressem a boa-fé?
Em contratos relacionais, justamente o aspecto pouco explorado e que acaba sendo determinante à sustentabilidade e êxito do negócio, é o chamado “contrato psicológico”, o contrato não escrito, que alguns chamam de o velho “Fio do Bigode”. E o chamado Fio do Bigode nada mais é do que a identificação das necessidades e interesses de ambas as partes na realização do contrato, convertendo-se também na expressão clássica da confiança.
Todavia, dada a complexidade das relações contratuais nos dias atuais, os altos riscos e a necessidade de sustentabilidade na preservação das relações, o Fio do Bigode de hoje em dia deve ser escrito.
Sim, isso mesmo! Não basta mais afirmar que se está agindo com base na confiança, que haverá transparência, equilíbrio e boa-fé! Os elementos relacionais e comportamentais deverão compor a parte escrita do contrato. As partes devem escrever de que modo serão confiáveis uma para outra, de que maneira vão expressar a transparência, como manterão o equilíbrio
O Fio do Bigode, ou o Contrato Psicológico, deverá ser o recheio do bolo relacional.
Nessa linha, um dos primeiros passos deve ser o conhecimento recíproco, o conhecimento e o reconhecimento dos valores comuns e a construção de uma visão compartilhada.
Isso não deve ser uma surpresa no ambiente da inovação, onde são justamente as empresas humanizadas, com propósitos e forte senso de responsabilidade social e ambiental aquelas que mais espaço possuem.
Vou mais além: os dias atuais fazem recair sobre as Startups ( e os empreendedores) o peso de serem, no dizer da própria lei, “vetores de desenvolvimento econômico, social e ambiental. Sobre os empreendedores pesa uma complexidade de interesses coletivos e públicos.
Logo, quando falamos em projetos que serão financiados por Investidores-Anjos, é impossível não atentar para a base de valores de cada projeto, cuja identificação serve até mesmo de atrativo para conseguir a proteção do próprio Anjo.
E, afinal, antes de possuir o impulso de um investidor, o que possui o empreendedor, além do desejo de fazer evoluir o seu projeto? Possui sua marca registrada – cujo valor depende da valoração do próprio projeto, possui expectativas, propósitos, possui valores.
A identificação destes valores e dos propósitos, em consonância com os valores do Investidor-Anjo, devem formar a visão compartilhada para desenvolvimento da parceria e as bases da colaboração.
A visão compartilhada é a construção do senso comum entre as partes. É a construção do elo plural, ou seja, que pertence a ambas as partes, e não somente ao individualismo de uma delas. É a base da colaboração e da cooperação, como valores humanos e princípios solidários.
A base comum compartilhada, de sua vez, servirá de sustentáculo para a manutenção dos interesses e expectativas equilibrados. Uma vez construída, a base da colaboração, as afinidades e compatibilidades, servirão para que as partes envolvidas na relação tenham maior suporte para construírem os demais fios condutores, incluindo-se o compartilhamento da governança, o ajuste de mecanismos próprios e flexíveis de revisão, prevenção e resolução de conflitos.
Todo este processo de construção relacional e seu ajuste escrito, ao derradeiro, vai resultar na materialização da boa-fé objetiva, cuja existência, especialmente em contratos relacionais, é essencial para a existência do próprio contrato.
Um contrato relacional sem a presença da boa-fé objetiva, com efeito, equivale a um casamento sem amor, um casamento por interesses oportunistas, fadado ao fracasso, ou à frustração de expectativas de pelo menos uma das partes.
Portanto, Empreendedores e Investidores, sejam Anjos, ou não, para manterem seus votos fortalecidos e atingirem seus objetivos e expectativas, antes de pensarem no resultado ( que pode ser incerto e não sabido, especialmente quando se trata de inovação), devem saber construir adequadamente a relação que lhes vai servir de base e, de preferência, para além do bigode, por escrito.
Junho de 2021
Ana Luiza Panyagua Etchalus
Advogada – Contract Builder
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