Quiçá porque ainda sou produtiva e porque tenho filhas que recém dão seus passos iniciais no mundo do trabalho, ou ainda, quem sabe, num plano não tão egoísta, pela preocupação que tenho com as condições globais, qualquer que seja o motivo, é fato que tenho pensado e lido muito a respeito dos desafios enfrentados pelo mundo do trabalho.
E talvez me pegue sendo repetitiva, ou enfadonha para quem, tanto quanto, ou mais do que eu, gosta de analisar as questões num plano mais amplo. Ainda assim, me obrigo a referir as projeções feitas pelo Fórum Econômico Mundial[1] em seu último relatório prospectivo e que dá conta de que, embora empregos sejam criados pela revolução digital em curso, existe um aumento acelerado da destruição de postos de trabalho e, mais do que isso, um assustador aumento do grau de importância entre o trabalho desenvolvido pelas tecnologias, simultaneamente ao trabalho humano, numa paridade projetada para 50% até 2025.
Ou seja, máquinas (aqui entendidas como a tecnologia como um todo, incluindo hardwares, softwares, algoritmos, robôs, inteligência artificial, etc) dividirão com os seres humanos, em grau de igualdade, as tarefas do mundo de trabalho, em curtíssimo espaço de tempo.
Não por acaso fala-se tanto em desenvolvimento de competências “essencialmente humanas”, como sendo aquelas que trarão diferencial competitivo aos profissionais que ainda persistirem no mercado na sua disputa com a tecnologia.
Alguns falam em super skills, ou seja, aquelas habilidades intangíveis que estão associadas às características de cada um, à sua personalidade, às suas diferenças e particularidades.
Criatividade, inteligência emocional, pensamento crítico, flexibilidade, apenas para citar algumas, são competências valoradas pelo mercado que, diariamente, despeja cursos e cursos sobre como ser realmente um ser humano.
Estou sendo irônica? Sim, talvez, um pouco, quem sabe...(dúvidas também fazem parte da condição humana, especialmente em tempos de certezas relativas, ou não?).
Mas nessa toada surgem dois extremos: a escassez e o excesso.
A escassez de postos de trabalho acirra, ao natural, a competição, enquanto, por outro lado, o próprio mercado criou o que se pode chamar de prêmio invisível e inatingível ao “melhor ser humano”, promovendo uma espécie de competição bizarra para que candidatos ao trabalho se capacitem em serem mais humanos, no que se constitui, a meu ver, no excesso.
A tal ponto extremo que cada um se expõe diária e incessantemente em suas habilidades, num show diário de entertainment das super habilidades humanas: quem é mais simpático, quem é mais empático, quem é mais politicamente correto, quem programa computador e sabe cozinhar, quem sabe trabalhar proteção de dados e fazer cerveja caseira, quem demonstra ser o mais solidário, quem é mais criativo, quem constrói uma capela mais bonita que Rodrigo Hilbert e, por aí vai.
Anotando que todas habilidades são positivas. Nada de negativo aparece neste cenário, a não ser quando algum show de mea culpa surge rapidamente numa cena espetacular, em geral para ensinar como é possível reconhecer uma falha, mas com a rapidez suficiente para não ser cancelado ou cancelada.
Mas, peraí! A menos que estejamos falando de um gênio solitário, nenhuma dessas competências será desenvolvida isoladamente. Todas pressupõem relações interpessoais, trabalho em conjunto, colaboração, relação.
Relação pode ser entendida como uma vinculação de alguma natureza entre pessoas, ou mesmo entre fatos e coisas, uma conexão, um vínculo. Mas aqui me refiro a pessoas.
E nenhuma dessas habilidades tão festejadas e que passaram a ser produzidas em série valerão, a) primeiro, se não forem efetivamente introjetadas, internalizadas; b) segundo, se não representarem o reconhecimento humilde de nossas próprias falhas e, finalmente, c) terceiro, se não alcançarem legitimamente o outro.
A menos, é claro, que estejamos tão ocupados em competir com os robôs, que passamos a repetir de maneira programada determinadas condutas, sendo transformados, ironicamente, em dublês de humanidades.
Onde foi parar a reflexão? Onde podemos encontrar a diferença de cada um e o tempo de cada um?
Falhar e tropeçar também é humano, e ser politicamente incorreto também é humano, ser autêntico, de verdade, é uma das belezas de sermos humanos e, pois, únicos.
Mas desenvolver humanidades requer responsabilidade, inicialmente consigo mesmo e, quase que em ato contínuo, com os outros. Exige reflexão e, caros leitores, juro que tentei, mas não consegui escrever estas mal traçadas linhas e fazer a reflexão no mesmo tempo de duração de uma twitada.
Mas, voltando ao mercado de trabalho em escassez, já me referi em um artigo recente[2] ao fato de que o contrato de trabalho, é, antes de tudo, uma relação. E não posso me relacionar verdadeiramente com alguém, em qualquer sentido e, muito menos no trabalho colaborativo, se não entregar o que há de mim em termos positivos e negativos que é, afinal, do que somos feitos, nós, os seres humanos.
Gerar conteúdo, por exemplo, não pode ser apenas compartilhar a foto da festa solidária da empresa espetacularmente documentada no último final de semana de imersão. Conteúdo é recheio, conteúdo são entranhas, miolos[3] e, aqui entre nós, nem todo mundo gosta de apreciar entranhas, mesmo que elas sejam parte indissociável de qualquer ser. E, afinal, não se desenvolvem apenas com 140 caracteres.
Capacitar a nossa reflexão deveria ser uma das tantas habilidades de que necessitamos, por exemplo, para tentar criar opções de sairmos dessa encrenca que nos metemos ao dividir espaço de trabalho com as outras humanidades que foram produtos de nossas capacidades humanas, sendo propositalmente redundante.
Pode ser que eu esteja errada, que minha visão ultrapassada por multidões de twitadas sequer seja levada em consideração, mas de onde eu vim, errar era humano.
[1] https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs-report-2020/in-full [2] https://www.etchalus.com.br/post/contrato-de-trabalho-é-antes-de-tudo-uma-relação [3] https://www.sinonimos.com.br/conteudos/
Mundo esquizofrênico. Pessoas especializadas na futilidade e consumo desenfreado… hora de voltar Para a caverna …