Exchange - the giving up of something in return of receiving something else is one of the most ubiquitous of all human behaviour – Ian Macneil
O contrato, o acordo, o encontro de vontades, é a base de qualquer relacionamento e tem sido a mola propulsora do desenvolvimento da sociedade. O contrato é o simbolismo da troca entre os seres humanos. E a troca, conforme reproduzido acima e no dizer de Ian Macneil[1] “é um dos mais onipresentes de todos os comportamentos humanos (tradução livre)”
Por muitos anos o mundo jurídico foi dominado pela teoria clássica dos contratos que, em que pese tenha servido para o desenvolvimento da vida em sociedade, tornou-se com o tempo pouco maleável às constantes alterações e às novas dinâmicas das relações civis e comerciais.
No entanto, estudos mais recentes entendem que, devido à nova revolução em curso (a revolução tecnológica) e o ritmo alucinado como as relações surgem e desaparecem, as relações contratuais não poderiam manter o mesmo critério clássico, especialmente na sua construção (visando à sua sobrevivência, inclusive).
Oportuno apontar aqui o dizer de MACEDO JR[2] ao afirmar que existem quatro elementos essenciais à análise de um contrato, quais sejam, a matriz social e econômica; a especialização ou divisão social do trabalho; a liberdade de escolha, ou autonomia da vontade e a consciência do passado, presente e futuro.
Aliás, o autor antes referido chega mesmo a conceituar o contrato como um projetor de trocas emanado numa matriz social fundada ...na especialização do trabalho e da troca, o sentimento de escolha, aparente ou real, e seu exercício, e a consciência do passado, presente e futuro”.
Num mundo onde há uma nova matriz social e econômica em transformação constante e veloz, e onde, à toda evidência, as estruturas tradicionais de governança não dão mais conta das inúmeras demandas de uma população mundialmente ampliada, as trocas, os contratos, portanto, devem ter outra base em sua formação.
As ideias de alterações já vinham sendo debatidas antes mesmo do impacto gerado pela Pandemia Covid 19, tomando forma com a evolução dos estudos de direito econômico e aliando-se mais recentemente à corrente do capitalismo consciente, onde as empresas passam a ter responsabilidades de atender demandas antes (e agora não mais) atendidas pelo poder público. Daí porque, num dado momento, passa-se a falar mais em responsabilidade social e ambiental atribuídas ao mundo privado, naquilo que antes pertencia com exclusividade ao poder do estado.
Neste novo ambiente os contratos começam a ser repensados, alterando-se a visão clássica, especialmente de sua construção.
Retorna à cena jurídica a teoria dos contratos relacionais defendida nos anos 60 pelo professor norte-americano de origem escocesa, Ian Macneil e que, naquele então, embora muito festejada no meio acadêmico, não conseguiu rivalizar ou fazer frente à teoria clássica dos contratos. Vivia-se outra matriz social e econômica.
No entanto, em tempo recente, o trabalho de Macneil e de vários outros acadêmicos alinhados à mesma corrente, foi reavivado pela doutrina anglo-saxônica, incluindo trabalhos da Harvard Bussines School[3] e tomando por base princípios de direito econômico.
Em paralelo, Linda Alvarez e J. Kim Wrigth, advogadas e professoras norte-americanas, centradas nos princípios do Capitalismo Consciente, apresentam e divulgam ao mundo jurídico uma metodologia chamada Contratos Conscientes®[4], através da qual transpõem práticas baseadas em valores, enfatizando os aspectos humanos de construção de contratos.
As advogadas norte-americanas partem da ideia de que advogados com treinamento em direito colaborativo[5], estariam habilitados a ajudar as partes na construção de contratos com linguagem e mecanismos de convergência, e não de divergência.
Tratamos aqui de todos os tipos de contratos? A resposta poderia ser positiva, já que o objetivo aqui, em última análise, é ajudar os cidadãos (com ajuda de seus advogados) a ter uma consciência mais ampliada de suas obrigações, vantagens e responsabilidades contratuais. No entanto, em uma sociedade que vive a explosão dos smart contracts impulsionados por algoritmos, é de se afirmar que nem todos os contratos, infelizmente, poderiam receber o tratamento que deveriam receber.
Embora devesse, não quero adentrar no tema da autonomia da vontade e da consciência na tomada de decisão que sabidamente vêm sendo relativizadas pelos algoritmos, mas não posso aqui deixar de registrar minha constante preocupação neste sentido.
Mas o tema do presente e modesto apanhado enfoca aqueles contratos ditos de natureza relacional, que seriam aqueles contratos opostos aos contratos descontínuos e onde presente visão e expectativas continuadas das partes contratantes.
Nas relações continuadas – ou que se pretendem que sejam continuadas – é imprescindível que as partes tenham uma visão mais ampliada de suas responsabilidades, e não somente de suas vantagens, assim como conheçam mais a fundo a outra parte com a qual estabelecerão a relação. No entanto, em que pese a característica relacional de determinados contratos, é justamente a sua parte essencialmente relacional aquela que é pouco, ou nada, trabalhada.
COLLINS[6] afirma existirem três tipos de racionalidade em um contrato relacional: 1) a racionalidade contratual básica (direitos e deveres); 2)a racionalidade econômica( o custo x benefício) e, finalmente, a racionalidade relacional.
Esta última, a racionalidade relacional, é onde residem as expectativas difusas, ou ainda, as crenças em relação às expectativas recíprocas. É o chamado “contrato psicológico”.
O contrato psicológico não é um contrato jurídicamente reconhecível, nem mesmo como contrato implícito. No entanto, a violação deste contrato psicológico é, no mais das vezes, considerada uma traição (de expectativas muitas vezes não reveladas), colocando em risco, ou mesmo levando ao rompimento, ainda que as outras racionalidades nem mesmo estejam tão desalinhadas. O contrato psicológico é a parte invisível de qualquer contrato, mas desempenha um papel muito relevante naqueles contratos relacionais.
Pode-se entender que é justamente o contrato psicológico aquele que determina a ativação positiva, ou negativa, das demais racionalidades.
COLLINS[7] chega a referir que, tanto a lei, quanto os tribunais, ao privilegiarem apenas a racionalidade binária dos contratos – racionalidade contratual/jurídica e racionalidade econômica – deixam de avaliar a integralidade de um contrato.
E quais são os porquês por detrás destes trabalhos?
As respostas são várias, mas sintetizo em algumas das quais são entendidas por mim, modestamente, como as mais significativas:
- no mundo atual cada vez mais difícil estabelecer relações contratuais duradouras, especialmente relações de parceria social, de fornecimento, de colaboração;
- os custos de rompimento/rescisão das relações são elevados, não somente do ponto de vista econômico, como também psicológicos;
- nas relações de fornecimento, estudos econômicos indicam que a manutenção de um fornecedor, ao invés de vários, reduz custos de produção;
- a cláusula clássica de rescisão sem justa causa pode incentivar comportamentos e intenções perversas de não investimento nos parceiros, gerando a falta de interesses convergentes;
- os contratos clássicos deixam sempre zonas de sombreamento, ou seja, zonas obscuras não trabalhadas adequadamente que podem estimular desconfiança, retaliações e fim da cooperação;
- o contrato deveria ser um vértice, um ponto de encontro e de expansão das partes envolvidas. Para isso, este contrato deve ter alinhamento contínuo de suas expectativas, sofrer atualização contínua dos pontos de referência e prever e estabelecer antecipadamente as possibilidades de falha e de mudanças (hipóteses de revisão);
- já que é impossível prever todas as situações futuras no desenvolvimento de um relacionamento contratual, as partes devem mudar o paradigma de uma linguagem contratual divergente, alterando-a para uma linguagem convergente e de compartilhamento de metas e objetivos, bem como para um trabalho conjunto no sentido de mitigar os riscos recíprocos e, não somente repassá-los para a outra parte.
O que se conclui, portanto, é que não se pode imaginar a construção de um contrato de natureza essencialmente relacional, sem que seja trabalhado o contrato psicológico nele inserido, expandindo-se a racionalidade relacional de modo a estar equilibrada com as demais ativações do contrato. Uma vez trabalhado, o contrato psicológico deve integrar a formação expressa do contrato, evitando-se potenciais zonas de sombreamento.
O case do escritório na construção desta nova prática, foi o desenvolvimento do relacionamento societário de uma start up, na qual os sócios buscavam orientação para elaboração de um contrato social.
Partindo das reflexões e conceitos acima e agora sinteticamente compartilhados, o escritório propôs aos sócios a aplicação de metodologia própria, não apenas e tão somente para elaborar um contrato social ( cujos modelos, hoje em dia, podem ser rapidamente encontrados através de qualquer buscador da internet), mas para construção da relação e de conceitos de governança e gestão do relacionamento em formato solidário, cooperativo e, além disso, mecanismos que gerassem a ambas as partes fontes de apoio recíproco. Houve intenso trabalho do “contrato psicológico” das partes, suas expectativas e interesses na estruturação do negócio.
O contrato foi composto na sua expressão escrita pelos chamados "componentes tradicionais", agregando-se expressamente cláusulas construídas pelas partes e que tinham por objetivo a construção e o alinhamento constante do relacionamento e das expectativas, não sem antes serem construídos os princípios orientadores e estruturas robustas e flexíveis de governança. Ou seja, as partes admitiram expressamente a existência do contrato psicológico inserindo-o no contrato e, portanto, dando-lhe força jurídica.
A ideia é que o contrato fosse um elemento “vivo” entre as partes, e não letra morta engavetada para futuras disputas.
O caso trabalhado serviu de base para aplicar os mesmos conceitos em outros contratos de natureza jurídica distinta, porém, que também guardam características essencialmente relacionais, como é o caso de contratos de joint venture, contratos de distribuição, associação, representação comercial, fornecimento, contratos de trabalho, entre outros.
Ao derradeiro, como nota pessoal ao trabalho que se está a desenvolver, foi utilizada uma linguagem jurídica simplificada, evitando, dentro do possível, a dificuldade de compreensão e, pois, de interpretação das regras que deverão nortear o desenvolvimento do relacionamento.
São muitas as hipóteses de reexame de conceitos que vêm sendo provocadas por força da transformação que a sociedade globalizada vem sofrendo. O presente artigo é apenas um exame singelo e superficial de uma matéria que exige reflexão profunda e constante. Ainda assim, sem medo de errar, afirmo que, quanto mais flexibilidade as partes tiverem na construção de suas relações – tanto pessoais, quanto de negócios – tanto mais fácil será prevenir conflitos, minimizar ou até evitar custos e pesadas responsabilizações.
Um contrato relacional, o nome já diz, envolve relações. Logo, deve servir para atender, não somente interesses econômicos puros e duros, ou o dever/ser da norma. Um contrato deve servir para regular as trocas entre seres humanos, portanto, deve ser um instrumento flexível, permitindo adaptar as partes envolvidas às alterações que qualquer pessoa esta sujeita, seja física, ou jurídica.
A pandemia, aliás, em que pese seus efeitos deletérios, pode servir de exemplo à reflexão ora proposta.
Janeiro 2021
Ana Luiza Panyagua Etchalus
Advogada, mestre em Direito do Comércio Internacional, Especialista em Psicologia Jurídica, Mediadora Certificada ICFML, Co-fundadora da OLADC - Organización Latino Americana de Derecho Colaborativo
[1] Macneil, Ian, The Relational Theory of Contract: Selected Works of Ian Macneil, Thomson Reuters, 2001, London, pg. 89 [2] MACEDO Jr, Ronaldo Porto, Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor, Editora Max Limonad, 1998, pág. 151 a 153 [3] https://hbr.org/2019/09/a-new-approach-to-contracts#comment-section [4] Alvarez, Linda – Concious Contracts, Wrigth, J. Kim, Lawyers as Changemakers [5] https://globalcollaborativelaw.com/ [6] COLLINS, Hugh, The Contract of Employment in 3D, Changing Concepts of Contract (Palgrave Socio-Legal Studies) (p. 65). Palgrave Macmillan UK. Edição do Kindle. [7] COLLINS, Hugh, op. Cit.
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